quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Costa Cabral

  Quem quiser viajar no tempo pode sempre dar um passeio pela rua de Costa Cabral, na cidade do Porto. Esta zona da urbe mantém-se como cenário inverosímel; congelada nos idos anos de 1970, foi trazida directamente para os nossos dias com um leve cheiro a bafio. Quem estiver interessado em saber qual era o aspecto do comércio num país comunista, como a saudosa RDA, ou mesmo uma Bulgária decrépita, pode sempre deambular por estas lojas de calçado e roupa de difícil classificação. Os manequins ainda são construídos à boa maneira antiga, e é perturbante ver uma blusa com um decote mais aberto, suspensa sobre uma estátua que podia estar num filme de terror. As montras afundam-se rapidamente na escuridão de buracos negros, e se nos arriscarmos a entrar podemos não mais conseguir sair. Tudo aqui é inquietante, e mesmo a mulher, cinquentona, passeando o seu cão fora de época sobre o passeio estreito, se torna um enigma para o transeunte inexperiente. Será puta ou avó de família da pequena burguesia, ali para os lados do Covelo?

domingo, 7 de novembro de 2010

Nina Clemens e as hiperligações

  Comecei por pesquisar com a seguinte frase -"how to remember things from your childhood", na esperança infantil de encontrar algum guru que falasse sobre métodos de regressão, meditações e coisas do género. Entrei numa página que era uma espécie de Forum sobre memórias da infância. Um tipo perguntava se alguém se lembrava de uma série que o havia impressionado. Tinha lá o link para ver, no youtube, um bocado da tal série. Eram bonecos feitos de plasticina, um parecia o Einstein, depois duas crianças que o acompanhavam, e numa tela futurista aparecia um suposto demónio, que ia explicando aos três a sua natureza. Ainda dentro do forum, havia um tipo que respondia à interrogação do outro, e lhe dizia que o filme era baseado num conto do Mark Twain. Havia outro tipo que dizia ter lido algo do Mark Twain que o impressionara muito. Outro apostava que deveria ter sido "Letters from the Earth", e lá fui ver do que se tratava. Fiquei a saber que Mark Twain se chamava Samuel Clemens, e que estes seus ensaios haviam sido publicados postumamente, por conterem visões pouco ortodoxas sobre religião, e cristianismo em particular. Li ainda que uma filha do escritor morreu afogada na banheira. A outra filha, Clara Clemens, teve uma filha, chamada Nina Clemens. Esta Nina é que me impressionou. Nasceu poucos meses após a morte do avô, e morreu sozinha, sob o efeito do álcool e das drogas, num motel de L.A.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

No reino do Papa

   Fui ver o Papa. No íntimo do meu coração, talvez esperasse ser como a outra que tocou na orla da túnica de Cristo, enquanto Ele caminhava apertado por entre a multidão, e ouviu-O perguntar - "Quem me tocou?", ao que ela respondeu - "Fui eu". Claro que a mensagem aqui é contrária à minha intenção de contacto físico com alguém. O acto de tocar levemente a túnica, no meio de toda a confusão e aperto em volta, mostra que a comunhão é feita através do coração. Os outros apertavam-No de todos os lados, mas Ele sente, precisamente, aquela que mal O tocou.
   Se eu quisesse tocar ao de leve este Papa, certamente teria de morrer primeiro, ou então, morreria no meio do processo. E o mais triste é que acabaria apenas por tocar um vidro anti-bala, fumado, onde talvez a minha mão ensaguentada, espalmada, provocasse uma espécie de asco piedoso por parte de Sua Santidade. Este é o reino do nosso mundo, aquilo que temos.
   No meio da multidão que enche a praça, mesmo ao meu lado, ouço um tipo falando ao telefone. Fala de forma gutural, num volume exagerado para a ocasião -"Tá bem, tá bem... nós tamos aqui, sim, já cá tou, vim à missa... vim ver..." e logo começam à sua volta pedindo silêncio. Um homem chega mesmo a dizer - " Oh pá, isto é uma missa! Fala mais baixo!" e o rapaz acena-lhe com um gesto que parece querer dizer que já falta pouco. O homem enerva-se. O rapaz, para onde olho agora directamente, aparenta fisionomia de algum tipo de atraso. Será que o homem não vê isso?, penso eu. E retoma a sua repreensão dizendo ao rapaz - " Oh pá, vê se te calas! Isto é uma missa!". O rapaz acaba a chamada, indiferente ao homem, e faz um resumo da mesma, quase aos berros, a uma senhora velhinha que é a sua companhia ali.
Isto tudo quer dizer o quê?
Como diz na bíblia, Quem puder compreender, que compreenda. Eu por mim, cada vez entendo menos.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Saneamento básico

   Há duas primaveras em Portugal. A primeira é aquela que vem nos livros da escola e que todos nós conhecemos, que tem passarinhos enamorados, meninas adolescentes fazendo salivar os quarentões, árvores explodindo em tons de verde translúcido, e muitas hormonas viajando ao sabor dos ventos. Depois temos a primavera típica da nossa terra, que é a dos funcionários da câmara esburacando tudo quanto é passeio e rua das nossas cidades. Aparecem já de manga curta e colete fosforescente, capacete de protecção mal encaixado na cabeça pensadora, e normalmente trincam uma erva comprida em jeito de selvagens mascando tabaco. As combinações são infindáveis, e os propósitos do trabalho também. Temos serviços de saneamento, instalação de fibra óptica pela enésima vez, condutas de gás, ramal de electricidade em reposição, e quando chegam ao fim de um troço, começam a abrir de novo o chão com picaretas ensurdecedoras, em jeito de quem sinaliza a chegada da época da destruição. Quando os passeios são do tipo calçada portuguesa, então aí temos trabalho até ao início do outono, pim, pim, clac, numa arte de encaixar cubos de pedra que se pode dizer quase milenar. Além disto, dá-lhes na gana, muitas vezes, para serrarem árvores que fazem parte do património. Eu gosto muito da Primavera à Portuguesa!

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Loucura

   Foi nas escadas que davam para a luz do dia que ouvi a sua voz. As pessoas seguiam como soldados sonâmbulos, em fila indiana, degrau a degrau até à liberdade das árvores verdes, plantadas mesmo à saída da paragem. Ela dizia - doutora, eu não consigo... não consigo, não tenho vontade de nada... não sei que fazer doutora, eu não quero nada... não consigo ir trabalhar, eu não tenho vontade de nada, oh doutora - e eu tive medo de olhar para trás, e continuei subindo as escadas, atrás de uma formiga cinzenta, de punho cerrado e ameaçador, que no seu andar geométrico, quase me batia no queixo. Subíamos as escadas. Pensei, deve ser uma mulher madura, na meia-idade, desesperada, ligando à sua psiquiatra, e pensei também que a sua médica devia ser uma boa pessoa, caso contrário nem atenderia a sua chamada. Já no passeio a sua voz alta fura a cidade, e por entre as formigas vai pedindo ajuda, indiferente a tudo e a todos diz - mas doutora, eu não consigo... tive aqueles sonhos estranhos de novo, doutora, tenho aqueles pensamentos horríveis... eu não quero mais isto doutora... Eu penso que a mulher se despiu com estas palavras. Estará ela nua? Estará de pijama? Não tenho coragem de olhar para trás, e vou andando como quem foge em silêncio, sem querer chamar a atenção de ninguém. Tenho medo que ela me grite - TU AÍ! TU QUE FOGES DE MIM, NÂO SERÁS TÃO LOUCO QUANTO EU?

domingo, 11 de abril de 2010

Sal da Vida

Out of Africa.

sábado, 10 de abril de 2010

Livro sem fim

   Isso é o que chamo de surpresa agradável. No meio de uma daquelas feirinhas de livros, que aparecem como oásis nos sítios mais improváveis, eis que encontro este livrinho perdido no meio de tantos outros, e logo me apaixono pelo seu conteúdo multidimensional inqualificável. E se digo que é inqualificável, é porque é isso mesmo que apetece dizer de um livro que não se deixa prender a categorias hierárquicas, classes absurdas, ou estantes de filosofia. O autor é como o livro, e o livro como o autor: inacabado, sem fim...

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Sombras

Quero que as sombras do mundo se vão todas foder.

domingo, 28 de março de 2010

Ansiedade Existencial

   O medo profundo deixa-nos vulneráveis. É sempre uma ameaça às fundações, ao centro da minha existência. A ansiedade primária é a experiência da ameaça iminente do não-ser... A ansiedade é o estado subjectivo do indíviduo se tornar consciente que a sua existência pode ser destruída, que ele se pode perder a si e ao seu mundo, que se pode transformar em "nada". Atinge o âmago da sua auto-estima e valor próprio.
   Com esta ameaça permanente do não-ser, podemos viver as nossas vidas em tentativa permanente de iludir a morte. Fugir da morte é também fugir da vida. Quando sentimos ansiedade, sentimos que a morte anda à espreita, que anda à nossa procura e nos vem buscar. Tememos ser sugados, sem capacidade de nos refazermos, perdidos para sempre. Sentimo-nos como uma partícula de pó vogando no imenso espaço do nada. Não temos qualquer refúgio.

(tradução livre de um texto de Paul Robb, onde estão contidos alguns pensamentos de Rollo May)

quinta-feira, 18 de março de 2010

diário anónimo

   Se um tipo se põe a pensar sobre determinadas coisas, por vezes, chega a conclusões que não imaginava serem possíveis de se tirar. Estou a falar deste blog e do seu significado. Um tipo olha para a página do blog e pensa - O que é que esta merda quer dizer? - e o pior é que não chega assim a nenhuma conclusão, digamos, brilhante ou clarividente. A verdade é que a escrita é um acto íntimo, um mergulho no negativo fotográfico que deu origem ao que somos. E a paciência para dizer o que somos nem sempre é coisa fácil de se ter.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Velhice lúdica

À medida que vamos envelhecendo o tempo acelera, e isto é uma verdade que ninguém consegue negar, acho eu. Mas que a vida de um velho se tenha de resumir ao que vejo na capa deste livro é, como diz um colega meu de trabalho - Um medo!

terça-feira, 2 de março de 2010

Ser

   Às vezes sinto uma espécie de compaixão por mim próprio, como se fosse eu o meu deus (e não será assim com todos?) e do alto do meu universo observasse a forma frágil como penso e existo. Sinto então uma cólera por ser limitado, por não poder, ou não saber, dizer tudo aquilo que queria dizer de uma só vez. Mas a própria estupidez, limitada no seu entendimento, tem a capacidade de emocionar um ser que se observa e se sabe finito. Muitas vezes penso que é daqui que nasce o sentimento religioso, desta fruição de uma incapacidade no pensar, em algo que sensibiliza pela sua própria ignorância, como se fosse possível, e é-o de facto, ter dó deste ser que pensa sem saber porque pensa. Pensar o pensamento é uma espécie de oração.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O paradoxo da verdade

Esta frase é falsa.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

o silêncio das ideias

   O maior tesouro é aquele que ninguém sabe onde está. Existe algo de precioso e ímpar em tudo aquilo que fica por dizer. As memórias são como lagos quentes em noites de verão, onde as ervas secas molham os lábios dos amantes. Será que já vivi até aqui?

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Sentido

   Este sentimento de incapacidade absoluta para guiar a minha própria vida não me parece ser bom. Poderia virar-me para Deus, é certo que sim, mas este deus para o qual me iria virar seria exactamente um deus nascido do desespero, depois de tudo falhar eis que regresso à casa do Pai, e rezo para que o pai me receba de braços abertos e sorriso na cara. Este deus é demasiado humano, sem dúvida, mas a sua humanidade talvez seja a minha salvação divina. Se falhei no trato humano, no mundo dos homens, resta-me agora o mundo perfeito dos deuses para buscar o meu quinhão de felicidade. Não será já durante esta vida terrena, é certo, mas poderei talvez contar com um prémio depois desta ilusão do real me deixar. E o mais fascinante de toda esta história é que tudo se passa dentro do nosso pensamento. Eu decido que deus existe, eu decido que ele não existe, eu decido que vou ser religioso, eu decido que não acredito em nada. Como pode um Deus ser uma entidade infinita se nasce de uma mente finita? Esqueci-me que o homem é um ser infinito. Só isso pode explicar o que não se explica.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Escrever

   Fico contente quando escrevo. Eu não digo que fico contente com aquilo que escrevo, não, nada disso, digo apenas que me contento com a felicidade extraída de um momento durante o qual sou aquilo que vou escrevendo. E não escrever, para mim, é equivalente a um crime. Não é um crime de sangue, mas assemelha-se em tudo a um crime passional; uma espécie de traição ao espírito do ser que nos habita.

sábado, 30 de janeiro de 2010

El Corte Inglés

   Os empregados do Corte Inglês surgem sempre em grupos de três, muito direitos e sorridentes, como se fossem figurantes de um qualquer filme invisível. Tem ar e pose de comissários de bordo, e isto não é de agora, pois quando era miúdo lembro-me de ir a Vigo e aquela aparência de felicidade saciada era a mesma. Uma calma solícita de quem vai ter prazer em encontrar uma criança perdida e a devolver a uns pais distraídos. Parecem estar sempre no meio de conversas curtas e inodoras, pontuadas por leves inclinações do corpo em jeito de conclusão do parágrafo. Braços atrás das costas, passinho adelante, gargalhada com sonoridade certificada pela norma ISO 9001, e depois dispersam como andorinhas e formam novos grupos de três unidades.

Conversas com Deus#1

- Sabes Deus, estive a ler aquele teu livro enorme, a bíblia, e aquilo realmente é uma história do outro mundo.
- Gostaste? Fico muito contente com isso, porque há aí algumas pessoas que desdenham daquilo, como o teu irmão Taramagos, por exemplo, está sempre a criticar-me o livro.
- Queres dizer Saramago, não é Deus?
- Isso! Saramago! Isto só pode ser um acto falhado, engano-me sempre no nome do homem.
- Mas voltando ao teu livro, como é que se consegue escrever tão bem? É que até mete raiva, como diz o Saramago sobre o outro que escreveu Jerusálem, não há direito que um tipo tão novo escreva tão bem...
- Eu também era novito quando escrevi a bíblia. Vou confessar-te um segredo, eu tirei um curso de escrita criativa com Alá. Já leste alguma coisa dele?
- Não, por acaso não li nada.
- Mas devias, mas devias...

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

J.D.Salinger

  Morreu hoje, aos 91 anos, o escritor norte americano J.D.Salinger. A única coisa que me apraz dizer é que descanse em paz a sua alma, e agradecer-lhe a maravilha que nos deixou ficar nas páginas do seu romance Uma Agulha no Palheiro. Quem nunca leu o livro vive em pecado, mas está sempre a tempo de se arrepender e correr até à livraria mais próxima. No meu tempo era um livro da colecção Dois Mundos (Bertrand), agora mudaram-lhe o nome para À Espera no Centeio, e não sei qual é a editora. Mas leiam o livro que não se vão arrepender!

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Fluir

   O corpo já me pesa. Quando tinha vinte e poucos anos não sabia sequer que tinha um corpo, tal era a sua ligeireza e perfeita a forma pela qual se fundia ao cenário que vivíamos. Agora o corpo pesa. Sinto as pernas engrossadas pelo cansaço de cada dia; os passos parecem ter íman sobre a terra. Quando arranco numa corrida é como um navio imenso ligando as hélices dos motores profundos, ganhando energia cinética, animado de uma força bruta semi-desorganizada. Já lá vai o tempo em que de um salto voava sobre seis degraus de uma só vez, sem ter sequer consciência de tirar os pés do chão. Voava porque não pensava em voar, e além disso os músculos ainda não tinham nomes. Eram simplesmente o desenho de um corpo jovem e perfeito.